"Se você não quer ser esquecido quando morrer, escreva coisas que vale a pena ler ou faça coisas que vale a pena escrever".
janeiro 27, 2012
Pinheirinho e os retratos do Brasil
Dentre tantas imagens geradas pela operação policial de “reintegração de posse” no Pinheirinho, em São José dos Campos, interior de São Paulo, a foto da idosa à direita desta página, poderia se tornar um ícone, apenas pelo fato de se tratar de uma mulher. Imagem de mulher (como já defendi, na postagem anterior) é um dos produtos que mais alimenta o mundo ocidental e mercantilista. As sociedades de consumo pregam o fundamentalismo da beleza a todo custo. Esta fotografia, publicada no portal Terra, que ilustrou uma das inúmeras reportagens sobre o mesmo tema, acabou se destacando entre outras, também, por ocasião da declaração dela, já como ex-moradora daquele bairro, apontando o dedo para o alto e dizendo mais ou menos: Deus está "vendo tudo", referindo-se à forma de despejo de que fora uma, entre centenas de outras vítimas. A despeito da propaganda, digo que a foto ao lado, reveste-se de tal beleza que transcende os parâmetros de beleza oficialmente aceitos, porque ensina. Os traços de expressão ensinam. As rugas ensinam. O olhar ensina. A lágrima também. Uma história presumível: um dia ela foi menina, depois moça, logo após, mulher. Filha, mãe, avó, bisavó. Dinheiro, muito pouco ou quase nenhum. Pobre (ser pobre não é pecado, nem vergonhoso). De passar fome, frio, solidão (a falta de amparo, sim é pecado, e também envergonha). De chorar escondida, num canto da casa. De enxugar o suor do rosto na manhã quente e calejar a mão ao final do dia. Mulher de rezar à noite para pedir “Deus, olhe por nós”. Uma vida sem desperdícios. De dias contados. Riscados cada um no calendário. Vencidos. Houve oportunidade de freqüentar escola, trabalhar fora de casa, criar os filhos com dignidade, ter um lar? Foi ela dona de um quintal que varreu, religiosamente, todos os dias. Quintal! Como é bom ter um quintal! Pra criar galinha, plantar alface e pendurar roupa molhada. É digno lavar roupa e estendê-la no varal do quintal da nossa casa. Quem e quantas de nós se identificam com esta imagem e com esta estória? A mulher velha e enigmática, retratando muitos brasis: os que existem e os que poderiam existir. Os reais e os que sonhamos, bem como os tristes, aqueles da fumaça das bombas, da tropa de choque, da correria, do medo, da revolta. Das crianças chorando, confusas, perdidas. Da violência, do despreparo, da arrogância. E dos abrigos. Do pós-guerra. Dos refugiados e apartados da terra, a caminho de lugar nenhum. Somos uma nação continental que rouba das velhas mulheres um irrisório pedaço de chão.
janeiro 18, 2012
Vamos dar uma espiadinha?
Beira surreal o debate sobre o suposto caso de violação dos direitos da Mulher no reality show mais “amado” do Brasil, cuja punição ao suspeito foi a “eliminação” e a “recompensa” para a suposta vítima, a permanência no jogo de disputa dos R$ 1,5 milhão. Confesso que estou exausta, pela tentativa de seguir, desde os primeiros tuites, e perseguir, até as últimas notícias e comentários, a polêmica gerada no #BBB 12. É preciso um esforço intelectual, muitas vezes acima da nossa real capacidade, para ler, assistir, interpretar, entender e formular juízo sobre um fato que, por sua natureza, é também repleto de subjetividades. A violência contra a mulher é tão enraizada em nossa cultura ocidental e mercantilista que ignoramos o fato mais óbvio: a mulher é um produto. Quanto vale a vida de uma mulher? Quanto pesa o seu caráter? Quanto custa o seu corpo, sua nudez e seu sexo? “As feias que me desculpem, mas beleza é fundamental”, disse o poeta idolatrado por dez entre dez publicitários. O que dizer das mulheres “fruta”? Figuras grotescas, difíceis de engolir... Qual foi a última vez que você ouviu uma canção que exaltava a mulher ou que declarava admiração a ela? E dançar? Em que lugar você dançou sem precisar rebolar até o chão, mostrar a calcinha ou fazer mímicas sensuais? Particularmente, evito ir às festas dançantes, para não pagar o mico de não saber cantar/dançar o hit do momento, e ter que repetir o refrão que, geralmente, sacaneia a mulher. Ainda dizem que o mundo é das mulheres! Mas, em que sentido se, diariamente, somos violadas? A maioria dos canais de televisão no Brasil tem se lançado com voracidade na guerra pela conquista dos mercados consumidores. Até os “canais religiosos” vendem – e como vendem! – produtos. Um dos alvos prediletos nesta guerra é a mulher. Alguma dúvida? Senão vejamos: da ponta dos pés a dos cabelos, para cada centímetro (por dentro e por fora) do nosso corpo há um produto correspondente. Para cada ocasião, cada estação, cada idade, cada cidade, há uma roupa adequada. Há um comportamento certo, na hora certa, com a pessoa certa! Atenção, perigo! Não saia do padrão, para não ser alienada ou engajada, mulherzinha ou sapatão! E a televisão reproduz, com a maior cara de pau, todos os estereótipos existentes e ainda cria milhares de outros! Como é difícil ser simplesmente mulher num sistema que, covardemente, nos rotula e nos estigmatiza. As imagens do encontro íntimo entre os dois participantes do BBB foram fartamente veiculadas pelas redes sociais. Eram tão agressivas (excitantes para muitos) que geraram uma onda de preconceitos e ódios - manifestações de flagrante retrocesso. Há mais de uma década, este programa está no ar – programa bom é assim no Brasil – e em quase nada contribuiu para o processo de construção de uma sociedade melhor, mais justa e igualitária. Ao invés de se aperfeiçoar, degrada-se a cada edição, ao ponto de ocupar as páginas policiais. Fora BBB’s, Fazendinhas, porcarias que chamam de entretenimento! Afinal, quem sentiria a falta destes substratos da cultura de massa, se todos fossem banidos da nossa televisão?
janeiro 08, 2012
O rio que passou em minha vida
Acho que foi no ano de 1975, que minha família e eu morávamos no bairro do Cordeiro, no Recife, quando conhecemos a tragédia que é vivenciar uma enchente. Eu era criança ainda, e não entendia à época, como era possível aquilo acontecer, minha casa ficar submersa com tudo dentro: móveis, roupas, comida, brinquedos, fotografias e livros. Tudo foi destruído, total ou parcialmente, tudo o que tínhamos em casa. O bairro inteiro e praticamente toda a cidade, na mesma situação desesperadora. Havia poucos prédios, e menos ainda, prédios com muitos andares (ao contrário de hoje) e eram estes os refúgios mais imediatos e seguros. Quantas histórias a serem contadas de uma só vez?! Da varanda do andar de cima, onde nos abrigamos, junto a mais outras famílias vizinhas, eu fitava a enchente passando pela rua (a rua do passeio de bicicleta, do boleado e pula-corda nos bons tempos secos) atenta aos objetos que flutuavam com a correnteza: botijões de gás, pneus, pedaços de madeira, garrafas vazias, animais e plantas. E até gente. Sob bóias improvisadas de câmara de pneus ou jangadas improvisadas de portas de madeira. Pode parecer poético, mas o é somente aos olhos de uma menina que admirava, com sua inocência, a transformação súbita da paisagem, sem considerar os danos irreparáveis causados pelos caprichos da Natureza e pela burrice dos homens que ignoram os caprichos da Natureza. Por que não saímos antes de tudo desaparecer sob as águas? Podíamos viajar para Carpina, para a casa de tia Iaiá! Por que não salvamos nossas coisas, deixando afundar nossas recordações? Tenho muita saudade dos livros que não pude ler cujas páginas se degradaram junto com a lama e o lixo que ficaram depois. Até o nosso carro, um Veraneio, azul-esverdeado, ficou submerso na garagem, sem ter para onde ir - o mesmo que nos levava aos domingos para Boa Viagem e Itamaracá, nos belos dias de sol! O mau cheiro! Convivemos anos com o cheiro de lama que impregnou as paredes, o assoalho e os poucos objetos salvos! Fato é que, por mais evidente e iminente, a gente não quer acreditar no pior. Deixamos nos surpreender, não sem ônus, por uma fatalidade fatídica. Não cremos, há tempo, que o rio que corta a cidade, que nos dá peixe e fartura, que admiramos à noite com a réstia de luz do luar, será o mesmo capaz de transbordar e invadir nossas ruas, praças e quartos. Que suas águas, antes doces e serenas, vão correr pra qualquer lugar com fúria e, ao passar pelas escolas, igrejas e hospitais, carregar tudo o que estiver solto e soltar tudo o que estiver preso. Sim, as enchentes podem arruinar vidas, destruir histórias e soterrar sonhos. O que dizer para a menina que, neste momento, está olhando o rio passar por dentro da casa dela, carregando tudo para bem longe, para nunca mais ver? Se eu pudesse, diria a ela o que é mais importante: não desistir. Emergir ao caos e ao tempo e sobreviver.
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