"Se você não quer ser esquecido quando morrer, escreva coisas que vale a pena ler ou faça coisas que vale a pena escrever".
janeiro 08, 2012
O rio que passou em minha vida
Acho que foi no ano de 1975, que minha família e eu morávamos no bairro do Cordeiro, no Recife, quando conhecemos a tragédia que é vivenciar uma enchente. Eu era criança ainda, e não entendia à época, como era possível aquilo acontecer, minha casa ficar submersa com tudo dentro: móveis, roupas, comida, brinquedos, fotografias e livros. Tudo foi destruído, total ou parcialmente, tudo o que tínhamos em casa. O bairro inteiro e praticamente toda a cidade, na mesma situação desesperadora. Havia poucos prédios, e menos ainda, prédios com muitos andares (ao contrário de hoje) e eram estes os refúgios mais imediatos e seguros. Quantas histórias a serem contadas de uma só vez?! Da varanda do andar de cima, onde nos abrigamos, junto a mais outras famílias vizinhas, eu fitava a enchente passando pela rua (a rua do passeio de bicicleta, do boleado e pula-corda nos bons tempos secos) atenta aos objetos que flutuavam com a correnteza: botijões de gás, pneus, pedaços de madeira, garrafas vazias, animais e plantas. E até gente. Sob bóias improvisadas de câmara de pneus ou jangadas improvisadas de portas de madeira. Pode parecer poético, mas o é somente aos olhos de uma menina que admirava, com sua inocência, a transformação súbita da paisagem, sem considerar os danos irreparáveis causados pelos caprichos da Natureza e pela burrice dos homens que ignoram os caprichos da Natureza. Por que não saímos antes de tudo desaparecer sob as águas? Podíamos viajar para Carpina, para a casa de tia Iaiá! Por que não salvamos nossas coisas, deixando afundar nossas recordações? Tenho muita saudade dos livros que não pude ler cujas páginas se degradaram junto com a lama e o lixo que ficaram depois. Até o nosso carro, um Veraneio, azul-esverdeado, ficou submerso na garagem, sem ter para onde ir - o mesmo que nos levava aos domingos para Boa Viagem e Itamaracá, nos belos dias de sol! O mau cheiro! Convivemos anos com o cheiro de lama que impregnou as paredes, o assoalho e os poucos objetos salvos! Fato é que, por mais evidente e iminente, a gente não quer acreditar no pior. Deixamos nos surpreender, não sem ônus, por uma fatalidade fatídica. Não cremos, há tempo, que o rio que corta a cidade, que nos dá peixe e fartura, que admiramos à noite com a réstia de luz do luar, será o mesmo capaz de transbordar e invadir nossas ruas, praças e quartos. Que suas águas, antes doces e serenas, vão correr pra qualquer lugar com fúria e, ao passar pelas escolas, igrejas e hospitais, carregar tudo o que estiver solto e soltar tudo o que estiver preso. Sim, as enchentes podem arruinar vidas, destruir histórias e soterrar sonhos. O que dizer para a menina que, neste momento, está olhando o rio passar por dentro da casa dela, carregando tudo para bem longe, para nunca mais ver? Se eu pudesse, diria a ela o que é mais importante: não desistir. Emergir ao caos e ao tempo e sobreviver.
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