maio 14, 2012

Mais um Fragmento

Ele poderia cruzar o seu caminho, de forma inesperada, mas não a reconheceria. Era dado às longas e excêntricas viagens. Lembrar, ele não lembrava. Mas, podia estar em qualquer lugar e não estar em lugar algum, tudo ao mesmo tempo. Era preciso vigiá-lo e estar tentada a não perdê-lo, mas a perder-se de vista. Logo ali, estava o mar, o mais belo de todos, com seu perfume salgado e suas rendas. Ele estivera ali, sentia-lhe a ausência, já muito distante. Insistira, embora cansada, num rápido olhar, vertical e horizontalmente. O que teria lhe chamado mais a atenção, indagara. O fluxo inquietante dos carros a disputar o asfalto com os transeuntes? A teimosia ambulante engolindo a calçada e expulsando os vazios? Os anônimos apressados e atravessados por todos os cheiros? Tanto quanto ele, ela tropeçara nos restos de coisas e líquidos no chão. A bem dizer, por um lapso, eles se cruzaram no caminho, mas em tempos distintos. Ele galopava, sempre de volta. Ela precisava ir, e ia.

Fragmentos IV

Conquistara a mais pura independência: a do pensamento. Convinha sacudir todo o susto na direção do vício. Nada temia nada menosprezava. O pôr-do-sol se punha, restaurando a delicada tarefa de mudar as cores de tudo. As sombras surgiam, por mais transparentes que fossem dando contornos ao que via pela frente. Ela não acalentava culpa. Sofismava, enternecida, diante do óbvio. Grande era por demais a janela, ilimitados os seus domínios. Respirara fundo. Comia as próprias unhas com fome de entendimento e se entediava. Nem tudo tem explicação, concluíra. Palpitava o coração, dedilhavam os dedos. Havia uma dose de redundância inestimável, ao repetir o nome dele. Tantas vezes que, desconfiava, ele poderia ouvir. Um silêncio que fala só é possível na sedução. Desistira de seduzi-lo. Uma guerra perdida lamentou, mas sem tristeza. Há canções incuráveis e repertórios ocultos. A esperança foi derrotada. Era mais difícil ficar sozinhos que livres. Ironicamente.

maio 07, 2012

Frangmentos 3

Cultivara a lembrança e pressentia a doce tormenta acabar. Chegara tão perto dele, tocando-lhe o rosto de vidro que o cheiro imaginava, a voz inventava, o pensamento fingia. Reconhecia o delírio, limitando-se a deixá-lo ficar. Quem saberia? Quem mediria o tamanho da secreta obsessão? Um luxo poder ver sem ser visto. Sofisticação emocional. Uma vida dentro da vida. No poste, a lâmpada iluminava a noite com um tom desbotado. Tonta de sono peneirava cada palavra. Esfarinhava em versos o silencioso redemoinho de ideias a torturar o corpo. O corpo era capaz de transpirar tudo, pulsar a cada sentido, sentir. Um vento suave e necessário entrava empurrando janelas e portas que se debatiam timidamente. De que serve o fim, ela agora se interrogava. O fim é suportável, previra. Para o fim não é preciso motivo. O fim vem. Chegando, se espalha sobre a cama, absorve-se num sonho e desperta.